A CRIAÇÃO DO UNIVERSO E DA HUMANIDADE.

INTRODUÇÃO

     A Bíblia foi escrita durante um período aproximado de 1.500 anos, por cerca de quarenta escritores. Mas a atividade salvífica de Deus - e a resposta humana a ela - parece ser um tema que percorre a totalidade das Escrituras. Devemos, portanto, manter em vista esse tema ao abordarmos os ensinos da Bíblia a respeito da criação do Universo e da natureza dos seres humanos.

     A Criação do Universo

     As Escrituras claramente retratam Deus como um Ser com propósitos. Provérbios 19.21 observa:  "Muitos propósitos há no coração do homem, mas o conselho do Senhor permanecerá". Deus declara: "anuncio o fim desde o princípio e, desde a antiguidade, as coisas que ainda não sucederam; que digo: o meu conselho será firme, e farei toda a minha vontade" (Is 46.10; cf Ef 3.10,11; Ap 10.7).

     O estudo da criação deve, portanto, procurar analisar o propósito de Deus na criação (ou seja, o Universo é o que é porque Deus é quem Ele é). E, qual o propósito de Deus na criação do Universo? Paulo explica: "[Deus...] descobrindo-nos o mistério da sua vontade, segundo o seu beneplácito, que propusera em si mesmo, de tornar a congregar em Cristo todas as coisas, na dispensação da plenitude dos tempos, tanto as que estão nos céus como as que estão na terra" (Ef 1.9,10).

     O Universo Que Deus Criou

     Os astrônomos calculam que a Via-Láctea, a Galáxia a que nossa terra e nosso sistema solar pertencem, contém mais de 30.000.000.000 de sóis, muitos deles imensamente maiores do que o nosso Sol, que é um milhão e meio de vezes maior do que a Terra. A Via-Láctea tem a forma de um delgado relógio, medindo seu diâmetro 200.000 anos-luz. Ano-luz é a distância  que a luz percorre em um ano, à razão de 300.000 km por segundo. E há, pelo menos, 100.000 Galáxias como a Via-Láctea, algumas das quais distam milhões de anos-luz umas das outras. Tudo isto pode ser apenas um tênue argueiro no além do infinito, na extensão infinda do espaço.

     Deus como o Criador

     Os escritores sagrados não hesitam em atribuir a Deus a criação do Universo. Consideram apropriado, portanto, tributar-lhe toda a reverência, o louvor e a glória devido ao Criador.

     Os escritores do Antigo Testamento normalmente creditam a Deus a criação do universo físico, usando o verbo bara' "ele criou". O primeiro versículo das Escrituras declara: "No princípio, criou Deus os céus e a terra" (Gn 1.1). Esta sucinta declaração antevê o resyante  de Gênesis 1. Ao introduzir o tema da criação, Gênesis 1.1 responde a três  perguntas: (1) Quando ocorreu a criação? (2) Quem é o sujeito da criação? (3) Qual é o objeto da criação?

     Gênesis 1.1 destaca  o fato de um começo verdadeiro, ideia evitada pela maioria das religiões e filosofias, antigas e modernas. "[B]ara'... parece indicar que os fenômenos físicos vieram a existir naquela ocasião, e que não tinham existência prévia, na forma em que foram criados pelo fiat divino". Em outras palavras, até esse momento nada absolutamente existia, nem mesmo um átomo de hidrogênio.

     Os escritores do Antigo Testamento também empregam o termo yatsar ("formar", "modelar") para descrever atos criadores de Deus. Por exemplo, descreve apropriadamente o "oleiro", alguém que forma - ou plasma - um objeto segundo a sua vontade (Is 29.16). Finalmente, os escritores do Antigo Testamento empregam um terceiro termo primário ao descrever a atividade divina da criação: 'asah ("fazer").

     Os escritores do Novo Testamento não se mostram mais reservados que seus pares  do Antigo Testamento em atribuir a Deus a criação do Universo. Não é possível desconsiderar os ensinos do Antigo Testamento sobre a criação (alegando uma suposta condição cientificamente primitiva) sem ao mesmo tempo atacar violentamente os ensinos do Novo. A verdade é que o Novo Testamento cita como fonte de autoridade os 11 primeiros capítulos de Gênesis nada menos que sessenta vezes! Os tópicos incluem o casamento, a linhagem de Jesus, a depravação humana, os papéis funcionais no lar, o sábado, a nossa imortalidade, a futura nova criação do Universo e a remoção da maldição no estado eterno. Repudiando-se a autoridade e a fidedignidade dos 11 primeiros capítulos de Gênesis, que se fará a tais doutrinas no Novo Testamento?

     Fica evidente que os escritores neotestamentários consideravam o Antigo Testamento um relato fidedigno dos fatos, registrando-os conforme realmente ocorreram. O termo primário ktizõ, do Novo Testamento, significa "criar", "produzir", e ocorre 38 vezes (incluindo-se os seus derivados).

     Em Romanos 1.25, Paulo lastima que os idólatras "honraram e serviram mais a criatura do que o Criador, que é bendito eternamente". O mesmo Deus, mediante a sua providência, continua zelando por sua criação.

     Fianlmente, a Bíblia ensina que Deus sustém - ou mantém - o Universo. Os levitas, ao atribuir louvores a Deus, reconhecem que Ele dá vida a todas as coisas (Ne 9.9). Ao falar das hostes estelares, Isaías 40.26 declara: "Por causa da grandeza das suas forças e pela fortaleza do seu poder, nenhuma faltará". O Salmista adora a Deus porque Ele "conserva os homens e os animais" (Sl 36.6). Salmos 65.9-13 retrata Deus a governar o clima da Terra e a produção de cereais.

     As Escrituras deixam claro que Deus criou tudo o que existe. Conforme mencionado resumidamente acima, a Bíblia emprega a frase "os céus e a terra" para a totalidade da criação, o Universo inteiro. E, realmente, "céus" e "terra", vez por outra são colocados em declarações paralelas que abrangem toda a criação.

     O Propósito da Atividade de Deus na Criação

     A criação foi um ato da livre vontade de Deus. Ele tinha a liberdade de criar ou não criar. A criação foi um gesto gracioso de Deus, pelo qual revelou sua bondade. Gênesis 1 indica que todos os atos criadores de Deus conduziam a Adão e Eva. O mesmo capítulo demonstra haver correspondência entre os dias primeiro e quarto, segundo e quinto e terceiro e sexto. O primeiro e o segundo dia descrevem um só ato criador cada, enquanto o terceiro dia expõe dois atos criadores distintos entre si. O quarto e quinto dia descrevem também um único ato criador cada, ao passo que o sexto dia descreve dois atos criadores distintos entre si. Pode-se perceber a progressão, cujo clímax é a criação da humanidade.

     Em outras palavras, Deus tinha um plano eterno e salvífico para as sua criaturas, e a criação progride em direção a esse propósito ulterior. Antes da criação do Universo, o propósito de Deus era a comunhão entre Ele e as pessoas, um relacionamento de aliança (2 Co 5.5; Ef 1.4). Thomas Oden observa: "A verdaeira história da criação diz respeito ao relacionamento entre as criaturas e o Criador, e não às criaturas por si só, como se a criação devesse ser considerada por si mesma autônoma, independente e inderivada".

     Ao refletir sobre o momento em que o propósito de Deus para a criação será cumprido, Paulo escrev: "Para mim tenho por certo que as aflições deste tempo presente não são para comparar com a glória que em nós há de ser revelada" (Rm 8.18). Paulo, então, revela que toda a criação está gemendo, em ardente expectativa por esse momento (8.19-22). Assim também os crentes, apesar das bênçãos que tem recebido. Eles igualmente gemem, esperando a redenção do corpo (8.23-25).

     A Origem da Raça Humana

     Os escritores sagrados sustentam de modo consistente que Deus criou os seres humanos. Os textos bíblicos mais precisos indicam que Deus criou o primeiro homem diretamente do pó (úmido) da terra (Gn 2.7). Não há lugar aqui para o desenvolvimento paulatino de formas mais singelas de vida em outras mais complexas, tendo o ser humano como ponto culminante. Em Marcos 10.6, o próprio Jesus declara: "Desde o princípio da criação, Deus os fez macho e fêmea". Não pode haver dúvida  quanto ao desacordo do evolucionismo com o registro bíblico. A Bíblia indica com clareza que o primeiro homem e a primeira mulher foram criados  à imagem de Deus, no princípio da criação (Mc 10.6), e não formados no decurso de milhões de anos de processo macroevolucionários.  Num trecho curioso, Gênesis registra a criação especial da mulher: "E da costela que o Senhor Deus tomou do homem formou uma mulher; e a trouxe a Adão" (Gn 2.22). A palavra original traduzida por "costela" é tsela', termo este que não é usado em outra parte do Antigo Testamento nesse sentido. Em outros textos, significa o lado de uma colina, talvez um cume ou terraço (2 Sm 16.13).

     Por isso, a palavra pode significar que Deus tomou parte do lado de Adão, inclusive ossos, carne, artérias, veias e nervos, posto a afirmação do próprio homem: "Esta é agora osso dos meus ossos e carne da minha carne" (Gn 2.23). A mulher foi feita da mesma matéria que o homem, compartilhava da mesma essência.

     Os Componentes Básicos dos Seres Humanos

     Quais os componentes básicos dos seres humanos? A resposta a esta pergunta usualmente inclui um estudo dos termos "mente", "vontade", "corpo", "alma" e "espírito". Realmente os escritores sagrados empregam uma ampla variedade de termos para descrever os componentes essenciais dos seres humanos. A Bíblia menciona "coração", "mente", "rins", "lombo", "fígado", o "íntimo" e as "entranhas" como componentes das pessoas, que contribuem para a capacidade distintivamente humana de reagir a certas situações.

     Considerar o ser humano uma unidade condicional resulta em várias implicações. Primeira: o que afeta um elemento do ser humano afeta a pessoa inteira. A Bíblia vê a pessoa como um ser global, "e o que toca numa parte afeta a totalidade". Em outras palavras, uma pessoa portadora de doença crônica (no corpo) por certo terá afetadas as emoções e a mente e até o canal da comunhão normal com Deus. Erikson observa: "O cristão que deseja ter saúde espiritual dedicará atenção a questões tais como a dieta, o repouso e o exercício".

     Segunda: os conceitos bíblicos de salvação e santificação não devem ser considerados como a redução do corpo mau à escravidão do espírito bom. Quando os escritores do Novo Testamento mencionam a "carne" num sentido negativo (Rm 7.18; 8.4; 2 Co 10.2,3; 2 Pd 2.10), falam da natureza pecaminosa, e não especificamente do corpo físico. No processo de santificação, o Espírito Santo renova a pessoa inteira. De fato, somos inteiramente "uma nova criatura em Cristo Jesus" (2 Co 5.17).

     A Origem da Alma

     Ninguém no campo da medicina ou da biologia discute a origem do corpo físico do ser humano. Na concepção, quando o espermatozóide se une ao óvulo, a molécula de DNA deste desenrola-se e une-se à daquele, formando uma célula inteiramente nova (zigoto). Essa nova célula viva é tão diferente que, depois de se afixar à parede uterina, o corpo da mãe reage, enviando anticorpos para eliminar o intruso não conhecido. Somente alguns aspectos especiais e inatos do novo organismo o guardam da destruição.

     Por isso é incorreta a expressão "meu corpo", empregada pelas defensoras do aborto quando falam do embrião ou do feto - em qualquer estágio. O organismo desenvolvido no útero da mãe é, na realidade, um corpo individual, diferente. A partir da concepção, esse corpo distinto produzirá mais células, e todas elas manterão o padrão único dos cromossomos do zigot original. Está claro, portanto, que o corpo humano tem sua origem no ato da concepção.

     A origem da alma é mais difícil de ser determinada. Visando os propósitos do estudo que se segue, definiremos "alma" como a totalidade da natureza imaterial do ser humano (que abrange os termos bíblico "coração", "rins", "entranhas", "mente", "alma", "espírito" etc). As teorias da origem da alma que buscam bases na Bíblia são três: a preexistência, o criacionismo (Deus cria diretamente cada alma) e o traducianismo (cada alma é derivada da almas dos pais).

     A teoria da preexistência. Segundo esta teoria, uma alma criada por Deus em tempos passados entra no corpo humano em algum momento do desenvolvimento inicial do feto. Mais especificamente, a alma de cada pessoa tinha existência consciente e pessoal num estado prévio. Essas almas pecam, em vários graus, nesse estado preexistente, e por isso são condenadas a "nascer neste mundo num estado de pecado e em conexão com um corpo material".

     Devido às dificuldades insuper´veis, a teoria da preexistência nunca conquistou muitos adeptos. (1) Baseia-se na noção pagã de que o corpo é inerentemente mau e, portanto, uma forma de castigo para a alma. (2) A Bíblia nunca menciona a criação de seres humanos anteriores a Adão ou qualquer apostasia da humanidade antes da queda, em Gênesis 3. (3) a Bíblia jamais atribui nossa presente condição a alguma causa anterior ao pecado de nosso primeiro pai, Adão (Rm 5.12-21; 1 Co 15.22).

     A teoria do criacionismo. De acordo com essa teoria, "cada alma individual deve ser considerada uma criação imediata de Deus, que deve sua origem a um ato criador direto". A cronologia exata da criação da alma e de sua união com o corpo não é assunto levantado na Escrituras (por essa razão, as análises dos proponentes e antagonistas dessa teoria são um pouco vagas). Entre os adeptos da teoria do criacionismo estão Ambrósio, Jerônimo, Pelágio, Anselmo, Aquino e a maioria dos teólogos católicos romanos e reformados. As evidências bíblicas usadas para reforçá-la são os textos que atribuem a Deus a criação da "alma" e do "espírito" (Nm 16.22; Ec 12.7; Is 57.16; Zc 12.1; Hb 12.9). Alguns dos que a rejeitam argumentam que as Escrituras também asseveram que Deus criou o corpo (Sm 139.13,14; Jr 1.5).

     A teoria do traducionismo. Strong cita Tertuliano, o teólogo africano (c. de 160 - c. de 230), Gregório de Nyssa (330 - c. de 395) e Agostinho (354-430), que comentaram favoravelmente o traducionismo, embora nenhum deles forneça uma explicação integral. Mais recentemente, os reformadores luteranos, de modo geral, aceitavam o traducionismo. O Termo "traduciano" provém do verbo latino traducere ("levar ou trazer por cima", "transportar", "transferir"). Gênesis 5.1 registra: "No dia em que Deus criou o homem, à semelhança de Deus o fez". Por contraste, Gênesis 5.3 declara: "E Adão viveu cento e trinta anos, e gerou um filho à sua semelhança, coforme a sua imagem".

     A Imagem de Deus nos Seres Humanos

     A Bíblia afirma que os seres humanos foram criados à imagem de Deus. Gênesis 1.26 registra as palavras do Criador: "Façamos o homem ['adam - "humanidade"] à nossa imagem, conforme a nossa semelhança". O Novo Testamento emprega as palavras eikõn (1 Co 11.7) e homoiõsis (Tg 3.9). Eikõn geralmente significa "imagem", "semelhança", "forma" ou "aparência" em toda a sua gama de usos. Homoiõsis significa "semelhança", "correspondência", "aparência semelhante".

     Antes de afirmarmos o que é a imagem de Deus, explicaremos resumidamente o que ela não é. A imagem de Deus não é uma semelhança física - opinião esta abraçada  pelos mórmons e por Swedenborg. A Bíblia declara que Deus, que é Espírito onipresente, não pode ser limitado a um corpo físico (Jo 1.18; 4.24; Rm 1.20; Cl 1.15; 1 Tm 1.17; 6.16). O Antigo Testamento utiliza, de fato, termos como "o dedo de Deus" ou o "braço de Deus" para expressar o seu poder. Também fala de suas "asas" e "penas" para expressar o seu cuidado protetor (Sm 91.4). Esses termos, porém, são antropomorfismos, figuras de linguagem empregadas para retratar algum aspecto da natureza ou do amor de Deus.

     Portanto, a imagem de Deus pertence à nossa natureza moral-intelectual-espiritual. Explicando melhor: a imagem de Deus na pessoa humana é algo que somos, e não algo que temos ou fazemos. Esta opinião está em perfeito acordo com o que já estabelecemos como propósito de Deus na criação da humanidade. Primeiro: o homem foi criado para conhecer, amar e servir a Deus. Segundo: relacionamo-nos com outros seres humanos e temos a oportunidade de exercer o domínio apropriado sobre a criação sobre a criação de Deus.

     Com imagem natural de Deus queremos dizer o que é essencialmente humano nos seres humanos e que, portanto, os distingue dos animais. Isto inclui a espiritualidade, ou a capacidade de reconhecer e ter comunhão com Deus. Somente os seres humanos, na criação de Deus, possuem a virtude da imortalidade. Mesmo depois de rompida a comunhão entre Deus e a humanidade, na queda (Gn 3), a cruz de Cristo providenciou meios que possibilitam a comunhão com Deus por toda a eternidade.